terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Cavaleiro e o Leão


Um conto simples e comovente sobre coragem, gratidão e lealdade

Entre os nobres cavaleiros de Provença que partiram para as Cruzadas contra os infiéis que se haviam apoderado da Terra Santa, havia um senhor chamado Godofredo de la Tour, de grande valor, de imensa coragem, guerreiro heróico e desassombrado como jamais a outro se conheceu. Nos combates, era sempre o primeiro a lançar-se contra o inimigo, sem ter o cuidado de proteger o corpo contra as lanças, os dardos e as pedras. Cavalgando um soberbo animal, arremetia contra a mourama, tendo por escudo unicamente o nome do Senhor nos lábios. Assim, sua reputação cresceu, e cresceu tanto, que em todos os exércitos cristãos era admirado e decantado por todos os soldados.


Um dia, cavalgava num campo, junto a outros cavaleiros, seguido de numerosos homens de armas, quando se ouviram os rugidos, terríveis, de um leão. Todos tremeram, temerosos de cair nas garras da fera. Godofredo de la Tour porém, sereno, desmontou, desembainhou a longa espada de punho cravejado de pedras preciosas, e dirigiu-se para a floresta onde o campo, numa baixada, terminava.
Disposto a medir forças com o felino, avançou, impávido.


Ao entrar na mata, deparou-se-lhe um espetáculo terrível. Não eram rugidos de cólera os que o rei das selvas lançava, mas sim de dor. No lugar onde dormia, insinuara-se tremenda serpente e o aprisionara entre os anéis que despedaçavam.
A serpente, os olhinhos a brilhar, de língua bipartida de fora, enrodilhara-se de tal forma no leão apanhado de surpresa, que o pobre, por mais que fizesse, não conseguia articular um único movimento que fosse, muito menos causar à serpente o menor dano.


Calmamente, monstruosamente, o réptil temível ia apertando a fulva fera, intentando asfixiá-la e engoli-la depois. O felino não só sofria pela dor que o arrocho lhe causava, mas também, e talvez mais, por morrer de maneira tão ignominiosa. O olhar que lançou ao cavaleiro que, inopinadamente, surgira foi o de um ser que vê a vida que se esvai, desesperançado de tudo, mas que, num átimo, encontra a sua tábua de salvação.


Godofredo de la Tour avançou. A espada, levantada, lampejou e desceu certeira sobre a cabeça da serpente. Os anéis relaxaram-se, o abraço relaxou-se. O leão moveu-se, respirou, livre. Com um salto para trás, o valente De la Tour ficou em guarda, pronto para enfrentar a fera.


O leão, a princípio com dificuldade, depois com mais desembaraço, desvencilhou-se do corpo enrodilhado a inimiga atroz. Sacudiu-se. Sacudiu-se como se quisesse despojar os invisíveis anéis viscosos que o incomodavam. Enfitou os olhos nos olhos do salvador e, reconhecido, avançou para Godofredo de la Tour, esfregando carinhosamente, nas pernas do cavaleiro, a vasta cabeça de jubas de ouro.


A partir daquele momento, a fera considerou-se cativa de De la Tour, seguindo-o a todas as partes como um canzarrão fiel. Grande foi a surpresa de todos, ao verem Godofredo seguido do leão. Muitos fugiam, e os homens de armas do cavaleiro ficaram apavorados. Logo, porém, reconheceram que o felino era o melhor servidor do amo.
Era de ver-se, nas batalhas contra o turco, a sanha da fera. Lançava-se contra o inimigo, a rugir, em saltos descomunais, as garras à mostra, terrível como jamais, fazendo fugir atabalhoadamente, aos que não conseguia destroçar.


Terminada a Cruzada, os cavaleiros retornaram à Provença. Voltaram alegres, entoando canções ao país do sol e de alegres moças. Godofredo, contudo, era o único entristecido.


À hora de embarcar, o capitão do barco, terminantemente, não quis admitir a fera. Por mais que De la Tour argumentasse, por mais que rogasse, não conseguiu vencer a fortaleza do comandante.

E o leão teve de ficar.


Vendo o navio afastar-se, soltando baixos e graves rugidos, atirou-se ao mar. Nadou, nadou, até que as forças o abandonassem, e pereceu afogado, enquanto, também afogado em quentes lágrimas, Godofredo de la Tour chorava. Chorava, numa sentida homenagem à fera de coração de ouro.



(Enciclopédia Universal da Fábula, vol. XXV, "Godofredo de la Tour")

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